quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Uma crônica de merda

É muito difícil impedir que as pessoas digam merda. Primeiramente porque o sentido de “dizer merda” é muito subjetivo. Há muitos anos, quando eu ainda era uma adolescente deslumbrada, o namorado de uma amiga minha me contava que o professor de biologia dele dizia muita merda. Perguntei que tipo de merda ele dizia. O nobre rapaz, evangélico de carteirinha, me disse que o professor dizia que os homens vieram do macaco. Se o professor realmente disse “os homens vieram do macaco” eu concordaria que ele disse merda, mas duvido que a história tenha sido bem essa. Enfim, para o moço o professor dizia merda, para mim ficou o ponto de interrogação. 

E?

É que eu me vejo obrigada à retornar à pasta “Silvia Pilz”. Circula agora um texto que ela publicou há uns meses, texto mais antigo do que aquele sobre procriação, pobres e planos de saúde. Nesse “novo” texto, que na verdade é pré-histórico dada a tempística da internet, nossa colunista diz que tem uma tara em chamar “anões de anões”, que pessoas com síndrome de Down são estranhas, que crianças negras são feias e que todo mundo quer ser loiro de olhos azuis. 

Fico me perguntando quais são as fontes de Pilz para dizer que todo mundo quer ser loiro de olhos azuis. Diante da qualidade do raciocínio dela imagino que como ela gostaria de ser loira de olhos azuis deduziu que todo mundo tem o mesmo desejo. Deve ter muita gente que como ela faz masturbação mental imaginando possuir olhos claros e cabelos loiros. Mas deve ter muita gente feliz com suas peles negras, cabelos crespos e olhos castanhos. Tem muita gente feliz e muita gente que queria ser outra coisa. Vi um programa em que um menininho declarava que quando crescer quer ser um coelho. Eu preferiria ser o cachorro do meu colega de casa, que passa seus dias deitado sem preocupações recebendo cafuné e olhando pela janela. 

Na minha opinião Pilz falou merda. Tem gente que queria ter olhos claros e cabelos loiros que pode pensar que não. 

Imagino como uma pessoa com nanismo se sinta ao receber a inédita notícia de que causa estranheza. Os olhares indiscretos que recebem todos os dias na rua não devem fazer essas pessoas pensarem que Pilz escreveu alguma novidade. Talvez o que as surpreenda mais seja o fato de que Pilz quer ter o direito de chamá-las de “anão”. O que ela ganha com isso eu não sei, deve ser alguma tara estranha. Para mim gente que tem esse tipo de tara tem uma cabeça de merda e costuma dizer merda. Mas isso é bastante relativo. Tem uns humoristas sem-graça que pensam o mesmo que Pilz. Eles concordam entre eles. Eu só penso que dizem merda, muita merda. 

Uma amiga de uma tia minha tem um filho com síndrome de down. Ele é filho único e vive com a mãe. Os dois têm uma linda sintonia e relação. Ele terminou o ensino médio, foi mais devagar que outras crianças, mas terminou. Tem gente que não tem down e não termina. Todo mundo tem dificuldades, o que separa os fortes dos fracos é como enfrentam essas dificuldades, com ou sem a síndrome de down. Ele enfrentou com bravura. Hoje ele trabalha, é um cara relativamente independente e um filho zeloso e carinhoso com a mãe. Para Pilz ele causa desconforto. Para mim causa desconforto filhos ingratos que negligenciam as mães e pais. Pessoas têm taras e desconfortos muito diferentes, mas muitas vezes essas coisas são determinantes para a produção de discursos que podem ser inseridos no guarda-chuva semântico do “dizer merda”. 


Pilz me fez escrever um texto descontinuado porque me causa um enorme desconforto. É que o que realmente me causa desconforto é dizer muita merda. Mas acho que tanto Pilz quanto outros produtores de merdística devem poder continuar a produção. Aí ficamos sabendo o que pensam, aí rimos na cara deles e imaginamos o quanto tem gente que diz merda. Da merda nascem flores. Que os arautos da merdística nos façam pessoas melhores.  

E o hit de hoje é:


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