quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Você sempre pode piorar o ruim

Carlos Latuff estava entre os cartunistas que eu mais gostava. Tem um traço bacana e normalmente manda bem na arte de passar uma mensagem poderosa com a concisão de um cartoon. Mas ele caiu na armadilha que eu tentei discutir nesse post. Não quero me repetir, mas meu ponto é que quando você tenta dar voz à uma experiência que você desconhece as chances de fazer uma enorme besteira aumentam muito. Desconfio de quem entra na onda da defesa de tudo. Isso não quer dizer que você deve se omitir diante de racismo, machismo, xenofobia… nada disso. Isso quer dizer que você precisa ter a maturidade de reconhecer que ao tentar falar sobre esses temas POR QUEM vivência essas realidades todos os dias você parte do pressuposto arrogante de que você é capaz de falar pelos outros. 

Eu sou branca, nunca sofri racismo na minha vida! Nunca! Eu posso apoiar o movimento das mulheres e homens negros, mas eu tento fazer isso primeiramente ouvindo o que essas pessoas têm a me dizer, tentando compreender o que elas têm a me ensinar. E eu aprendi um monte de coisas. 

Um dia estava com umas amigas num churrasco. Uma delas é negra, uma socióloga estadunidense que dá aulas numa universidade nos EUA. Ela é uma mulher negra que além de vivenciar o racismo todos os dias estuda o tema há anos. Nesse churrasco o assunto do acesso ao ensino superior entrou em pauta. Naquela época eu era contra cotas raciais e manifestei minha opinião e soltei uma frase racista. Ela me escutou pacientemente e depois demoliu meu discurso de menina de classe média branca. Não estou diminuindo o fato, ou me envergonhando, de ser branca e de classe média. Estou dizendo que eu estou numa posição privilegiada. 

A primeira vez que botei meus pés numa instituição de ensino público foi quando entrei na universidade, isso depois de estudar toda a minha vida em escolas particulares. Não precisei trabalhar enquanto estudava, morava numa casa confortável, minha grande preocupação na vida era estudar para a prova de matemática, meu maior pesadelo! Ia para a escola bem alimentada, quando voltava o almoço estava pronto, cozinhado pela empregada. Uma das filhas dessa empregada, que era negra e tinha evidentemente filhos negros, engravidou quando era muito jovem, entrou no mundo das drogas, vou chamar essa menina de Marina, é um nome fictício. Marina era um pouco mais nova do que eu e fazia a própria comida enquanto a mãe dela cozinhava para mim. Marina voltava sozinha da escola pública enquanto a mãe dela ia para a porta da minha escola particular me buscar. Enquanto a mãe dela se preocupava em lavar e passar minhas roupas Marina se virava sozinha. Porque para sustentá-la a mãe dela precisava cuidar de mim enquanto ela passava o dia inteiro sozinha. Eu tive milhões de mais chances do que Marina. Enquanto eu vivia protegida dentro dos muros da minha casa ela vivia numa favela rodeada pela miséria, era marginalizada, acossada. Ela foi tragada pela própria realidade assim como eu fui tragada pela minha. A minha é comemorada pela sociedade, recebo elogios e tapinhas nas costas. Ela é esculachada pela sociedade, apontada na rua e há quem diga que ela merece ser exterminada. 

Me respondam, por favor, quem sou eu para dizer que é a meritocracia que vale algo? Quem sou eu para dizer que não devemos abrir cada vez mais nossas universidades para as jovens e os jovens negros? A universidade sempre esteve aberta para mim e fechada para elas/es. Meu primeiro “mérito” foi ter nascido branca numa família que podia me dar muito, esse meu “mérito” involuntário pavimentou meu caminho. E ela? 

Minha mãe fala de mim com orgulho. A mãe de Marina reza para não receber um telefonema anunciado a morte da filha. 

Isso é uma das coisas que a minha amiga me ensinou. Eu demorei muito para aprender. Aquele churrasco foi determinante. Ter ouvido dela que eu fui racista foi determinante. Não vou me fazer de “fodona”. Na hora eu fiquei com raiva da minha amiga. Muita raiva de ter sido acusada de racismo. Mais com o tempo amadureci o que ela me ensinou, fiz a retrospectiva da minha história comparando com a história da Marina. Quando eu reencontrar minha amiga quero agradecer o tapa de realidade que ela me deu. Sem rodeios, sem concessões. Minha amiga me salvou de um pouco da minha ignorância. 

Sabe? As vezes ser confrontada com os próprios preconceitos, especialmente quando você se coloca como uma pessoa contra os preconceitos, dói demais. Incomoda demais. Mas antes de tudo, ensina demais. O exercício é difícil, mas é o mínimo que podemos fazer se nos propomos a fazer algo.


Carlos Latuff lançou uma tirinha machista uma vez. Foi confrontado. Lançou outra se retratando. Carlos Latuff lançou uma tirinha machista outra vez. Foi confrontado. Perdeu a chance de aprender. No alto da própria arrogância emite um tipo de discurso que não difere muito dos discursos que a gente privilegiada e covarde que ele denuncia se esforça por propagar. Tentou falar de feminismo dando exemplo do SCUM manifesto, reproduziu a tolice freudiana de que mulheres têm inveja do pênis. Se desnudou. Outros andam se desnudando também. O que pessoas como Latuff, Idelber Avelar e muitos outros mostram é que muitas vezes se engajar em muitas lutas é puro alimento para seus egos. Eles têm certezas, eles querem palmas e elogios. Na primeira hora em que palmas viram “Ei, peraí” eles regurgitam tudo o que diziam combater. Esse tipo de comportamento me faz pensar que muito da militância é puro egoísmo ou egolatria. Chame como preferir. 

P.S. As vezes termino o post com uma canção. Aqui vai uma pérola que tem tudo a ver com tudo isso =)


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