quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Sobre ser ou não ser Charlie

O mundo Ocidental está dividido depois dos terríveis atentados ocorridos na França. O mundo Ocidental está dividido entre aqueles que condenam o atentado sem “…mas…” e aqueles que condenam o atentado, mas sob o véu do cinismo ou egocentrismo, dão malabarismos semânticos que muito mal disfarçam o maldito “eles mereceram”. 

Pelo meu primeiro parágrafo já dá para perceber de que lado eu estou.

Muita gente boa já escreveu a favor dos dois lados. Eu só justifico porque estou entre o grupo dos “sem mas…”. Minha defesa é simples, mas tem meandros complexos. Eu estou do lado em que estou porque acredito veementemente que entre os direitos humanos mais fundamentais está o direito de pensar e se expressar. É o livre-pensamento e a possibilidade de colocá-lo em debate público que nos torna humanos e mais humanos. Somos humanos porque pensamos, tentamos compreender, discutimos, e defendemos nossas idéias, e damos sentido ao mundo que nos rodeia. Não há condicionais para o direito fundamental de exercer, construir, desconstruir e reconstruir nossa humanidade. 

É óbvio que isso não significa que o pensamento está livre de crítica. Não está. Se me deparo com uma idéia com a qual discordo eu rebato, argumento, tento demolir os ARGUMENTOS que sustentam a idéia que me causa desconforto. Assim eu aprendo a organizar minhas próprias idéias, assim meus oponentes intelectuais e ideológicos podem fazer o mesmo. Lobão, o músico que virou polemista político, certa vez soltou uma frase que me marcou “o debate é um ato de amor”. Eu concordo, o debate é um ato de amor humano, debater com o outro é reconhecer a sua humanidade, o não-dito é como “eu te ouvi, tentei compreender o que você disse, eu discordo e vou te responder agora com minhas palavras”. 

O terrorismo é a negação da humanidade. O não reconhecimento da validade da expressão por si só é negar o valor humano do outro, quando negado esse valor o outro passa a ser um alvo que deve ser calado. 

Apesar de todos os tropeços o mundo Ocidental reconheceu a expressão das idéias como a expressão do próprio ser-humano. Não só reconheceu como protege esse valor fundamental como sua principal bandeira. A reconstrução dos Estados Nacionais pós-Guerra se pautou nesse ideal e esse ideal foi o motor ideológico que sustentou a oposição do Ocidente ao socialismo soviético. Esse ideal continua firme e forte e é ele que os jornalistas do Charlie Hebdo defendiam acima de tudo colocando suas próprias vidas em risco. Defendiam em todas as frentes, radicalmente, enfrentando o próprio governo francês as vezes, enfrentando a Igreja Católica, enfrentando os muçulmanos, enfrentado tudo o que quer limitar a livre expressão e consequentemente tirar um pouco de nossa humanidade. 

É por isso que eu sou Charlie Hebdo. Ao contrário do que li em algum lugar - dentre as dezenas de artigos que li sobre os atentados - eu não acredito que essa expressão seja uma simplificação. Há uma complexa e poderosa mensagem nessa declaração. É a declaração de que eu, e todos os outros Charlies, defendemos o humano.

Defendemos o humano, e os humanos.

Até os nigerianos massacrados pelo Boko Haram. É que o pressuposto que assassinou os cartunistas do Charlie Hebdo é o mesmo que apertou o gatilho que tirou a vida de mais de duas mil pessoas no país africano. É a negação da humanidade, é o ato nefasto de negar o direito de pensar e viver como se acha melhor. 


A comoção pelos mortos de Paris não é uma comoção apenas porque eles eram franceses, é uma comoção que reconhece que o gatilho fundamentalista que mata na França mata no mundo todo, e continuará a matar se não dermos uma resposta incisiva à isso: sem “mas”! Eu sou Charlie Hedbo. 

P.S. Está disponível na internet a primeira edição histórica do Charlie Hebdo. A edição está esgotada na França.  

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