quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Conheça o homem de bem

O homem de bem é um cidadão peculiar. O qualificativo “de bem” se enquadra direitinho no cara que acorda cedo para trabalhar e paga seus impostos. Cidadão exemplar. O homem de bem tem orgulho de ser homem, e de bem, e portanto não se furta de finalizar todo e qualquer argumento com “de bem”, categoria na qual ele tem certeza que faz parte. Ele não tem dúvidas de ser de bem até quando escreve que o estupro de uma menina foi merecido, ou que o rapaz morto com suas ferramentas de trabalho pela polícia mereceu morrer. O menino morto na frente da mãe mereceu morrer. É que a menina, o rapaz e o menino não são "homens de bem", e portanto não fazem parte da categoria especial “de bem” que dá, entre outras coisas, o direito de não ser assassinado pela polícia ou violentado. Se não for “de bem” o homem de bem já tem seu julgamento pronto: é puta, é traficante, é menor infrator. 

O homem de bem trabalha e paga seus impostos, o que outorga a ele, segundo seu próprio julgamento de bem, certos direitos especiais. Um deles é definir quem merece viver e quem merece morrer, o outro é estabelecer que toda e qualquer mulher merece ser estuprada, tem um outro ainda que faz o homem de bem crer que ele pode assediar quem ele quiser e bem entender e, por ser de bem, deve ser agraciado com um sorrisinho. O homem de bem é cheio de certezas.

O homem de bem se diz defensor da democracia… mas tem que ser a democracia “de bem”, a democracia dele. Na sua definição de democracia ele pode:

1. dizer o que quiser;
2. julgar a quem quiser;
3. rir de quem quiser;
4. assediar quem quiser;
5. ameaçar quem quiser.

Caso seja acionado na justiça ou criticado o homem de bem vestirá sua máscara favorita: a do injustiçado. A do trabalhador que acorda cedo e paga seus impostos. A do homem de bem massacrado pelos esquerdistas. O homem de bem é essencialmente um auto-declarado coitado, e acha que tem o direito dos direitos: ser acolhido. O homem de bem acha que merece atenção, afinal, ele é cheio de certezas, ele trabalha cedo, ele paga seus impostos, ele merece aplausos.  

O homem de bem jamais admite que está errado, porque talvez uma de suas principais características é ser egocêntrico. O mundo deve girar em torno do homem de bem, afinal, ele trabalha cedo, ele paga seus impostos. O homem de bem tem um valor em cifras que supera todo e qualquer valor humano. Impostos, de bem, trabalho. O homem de bem merece o mundo. Ele merece xingar mulher de “puta”. Ele merece sexo. Ele merece comemorar a morte do menino. Ele merece dizer que o trabalhador era bandido. Ele é o homem de bem, com todo o seu trabalho e impostos. 

O homem de bem as vezes é casado e tem filhos. Ele é um homem de bem! A mulher dele trabalha fora, limpa, cozinha. O homem de bem dá pitaco. Ele sabe qual é a verdade do mundo. Ele sabe o que ele merece e o que todo o resto do mundo não merece. Vejam o homem de bem. 

O homem de bem gosta de conforto e de tudo o que é conveniente… a ele próprio. Isso inclui ignorar toda e qualquer evidência que coloque em risco seu conforto, e tudo o que é conveniente a ele próprio. O homem de bem não gosta de mudanças. Ele trabalha, ele paga seus impostos, ele merece, ele pode. 

O homem de bem é tão merecedor que ele não se importa se seus atos e ações vão ofender ou machucar. Vale tudo para ele dar risada. Vale tudo para ele ter prazer. O homem de bem passa por cima de qualquer coisa para rir e para gozar, afinal, ele trabalha, ele paga seus impostos. Ele é um homem de bem. 

E o homem de bem tem medo, muito medo! O homem de bem tem verdadeiro terror de perder tudo o que ele merece por ser homem, de bem. Homem de bem que trabalha cedo e paga seus impostos.


O homem de bem é tudo isso: impostos, trabalhos e egocentrismo… o homem de bem é só isso.

domingo, 14 de junho de 2015

A esquizofrenia de uma imprensa falida (O editoral da Folha de S. Paulo)



A imprensa passa por momentos críticos. Jornais e revistas lutam ferozmente para sobreviver num mercado cada vez mais competitivo graças à democratização da comunicação promovida pela internet. Hoje qualquer pessoa (eu inclusive) pode criar um blog, um website ou mesmo usar as redes sociais para produzir e distribuir conteúdo. No twitter contas como a “Lei Seca RJ” veiculam informação em tempo real não só sobre os fiscais da Lei Seca, mas também sobre o trânsito, situação do transporte público, tiroteios, etc. Uma cidadã ou um cidadão com um smartphone e acesso à internet se transformou num veículo de notícia. Nem se todos os jornalistas de uma redação passassem o tempo todo nas ruas seriam capazes de concorrer contra páginas e perfis colaborativos. Definitivamente os jornais, telejornais, emissoras de rádio e revistas perderam o monopólio da notícia. Por que comprar um jornal ou revista se podemos consultar gratuitamente informações na internet? 

Nesse cenário os veículos tradicionais de notícia precisam cada vez mais de anunciantes para continuar no mercado. E quem banca o banco controla o movimento. Obviamente que esses anunciantes querem notícias que valorizem seus produtos. Se em algum momento a imprensa tradicional teve algo de independente, esse momento acabou quando os smartphones e a internet se tornaram mais acessíveis. Agradar os donos do dinheiro virou a regra e a imprensa tradicional cada vez mais se mostra como uma mercenária capaz de encampar qualquer briga que os anunciantes queiram enfrentar. 

Aí vemos a Folha de S. Paulo dando espaço para o que há de mais reacionário no jornalismo atual. Não preciso citar nomes, uma olhadinha no elenco de colunistas mostra que, embora pouco estrelados, eles veiculam discursos agradáveis aos grandes anunciantes e mobilizadores da audiência mais conservadora de nossas terras tropicais. Ao mesmo tempo a Folha ainda cultiva um público mais progressista, uma galerinha que curte comprar jornal da banca e tem perdido a paciência com os rumos da Folha. Eu mesma cancelei a minha assinatura do jornal, definitivamente ele deixou de ser minha principal fonte de informação. Bom, mas a Folha sabe que se continuar vai perder o público mais progressista que resta. Daí elaboraram aquela propaganda da “Opinião da Folha” no qual pessoas apresentam o posicionamento do jornal e depois apresentam o próprio. Tudo para ludibriar o público, tudo para dizer que a Folha é democrática e dá espaço para o contraditório. Mas é notável  que os colunistas e o tom das notícias em geral são explicitamente do nível “reinaldete”. Quem a Folha quer enganar?

Nesse estratégia louca de tentar agradar ao mesmo tempo gregos e troianos ocasionalmente o jornal solta editoriais como esse. Ora, não foram eles mesmo que  contribuíram para alimentar o ódio insano contra um partido? Ódio que chegou a tais proporções que fomentou panelaços e manifestações de apoio explícito à ditadura? Ódio que fez “cidadãos de bem” baterem palma para o questionável Cunha só porque ele é o aliado mais oposicionista da história de um governo? Ah, Folha! Assim vocês perdem o pouco respeito que vos resta. 


Leia mais sobre a Declínio e Queda do Império da Imprensa na página da Cynara Menezes

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Uma moça (Ódio.com Parte III)

Uma moça estava voltando do trabalho. Quando cruzava por volta das 23:00 em passos velozes a rua mal iluminada em que morava na periferia de Recife foi abordada por um elemento. Ele tinha por volta de 25 anos, estava vestido com uma bermuda vermelha, camisa branca e usava um boné preto. Ele a ameaçou com uma arma, a levou para um canto ainda mais escuro e a violou. Nos jornais a notícia apareceu em destaque, nos comentários Saulo acusou: “Quem mandou ela andar a essa hora sozinha?”
Naquela mesma noite Flávio atravessou aquela mesma rua, ninguém o estuprou. 



Uma moça foi para uma festa da faculdade. Ela encontrou vários amigos. Riu, dançou, tomou umas cervejas. Se encostou num canto tranquilo da festa, cansada, meio bêbada. Um jovem a tocou nas partes íntimas. Ela no dia seguinte fez uma denúncia na Universidade, a notícia parou no jornal do campus. Na página do Face da Universidade, Paulo comentou: “Quem mandou encher a cara?”
Naquela mesma festa Caio bebeu até cair, ninguém o tocou.



Uma moça dividia a casa com a mãe, os irmãos e o padrasto. O padrasto a violentava todas as manhãs quando a mãe estava no trabalho. Um dia uma vizinha desconfiou e denunciou. A notícia foi parar no noticiário da televisão. No Twitter, Pedro opinou: “Ela deve ter provocado ele, putinha.”
Metade das vítimas de estupro no Brasil são crianças. 89% das vítimas de estupro são do sexo feminino.



Três moças foram passear na reserva ambiental da cidade num lindo domingo ensolarado. No mato três sujeitos as abordaram. Eles as estupraram e as espancaram quase até a morte. A notícia circulou rápido pela cidade, no boteco José argumentou: “Três vagabundas de shortinho no mato, elas pediram por isso”. 
Naquele mesmo domingo Ricardo, Bruno e Felipe passearam naquele mesmo parque. As fotos do lindo passeio estão no instagram de Bruno.



Uma moça terminou com o namorado. Ele a matou. Nas redes sociais, Maria comentou: “Coitado, era um apaixonado”




  • Quem mandou?
  • Ela pediu!
  • Vagabunda!
  • Putinha.

É para elas. É para mim. É para você! Qualquer mulher é culpada no incrível mundo que odeia as mulheres. 

Não compactue! Seja solidária com outras mulheres, crie uma rede de proteção entre as mulheres. Denuncie os crimes: de sangue e de opinião.


sábado, 25 de abril de 2015

Ciclovias da discórdia


Voltei há pouco de uma temporada na Europa. Fiquei numa adorável cidade no Norte da Itália. Uma das coisas que eu mais gostava de lá era usar a bicicleta. De fato a bicicleta era o principal meio de transporte de boa parte da população. Era um tal de famílias inteiras saindo para passear de bike, idosas com suas bicicletas com cestas cheias de compras, engravatados correndo ocupados, senhoras de salto alto e belos vestidos pedalando… enfim, todo mundo usava a bike. Dependendo de onde eu ia era até difícil arrumar um lugar para estacionar a minha magrela. 

Bom, vários fatores contribuem para a bicicleta ser tão usada naquela cidade. Primeiro é que a cidade é pequena, os deslocamentos eram curtos e podiam ser perfeitamente superados de bicicleta. Segundo que a cidade é bem plana, com poucas ladeiras é fácil pedalar sem suar todos os líquidos do corpo. Terceiro é que os carros circulavam numa velocidade relativamente baixa, mesmo nos trechos sem ciclovias não dava medo pedalar, tanto é verdade que, como eu disse, todo mundo usa bikes lá: idosos e crianças pedalam tranquilamente pelas ruas.

Voltei para Sampa. Estou sem carro no momento então estou totalmente dependente do transporte público: irregular, cheio de atrasos e lotadíssimo! Mas não é tão ruim. Estava animada com o meu retorno porque fiquei sabendo das ciclovias inauguradas na cidade. Pensei: Se tiver uma perto da minha casa posso até comprar uma bike, apesar da ladeira para chegar na estação de trem mais próxima eu posso ficar menos dependente do busão.
Ledo engano!
Vai encarar?

Nada de ciclovia aqui em Pirituba, pelo menos na região onde moro.

O ÚNICO ônibus que passa na minha rua continua sempre atrasado e com horário muito limitado. Por exemplo, ele não circula domingo. Domingo ninguém sai de casa, sabem como é… Para chegar no outro ponto de ônibus mais próximo eu demoro no mínimo 15 minutos andando, subindo uma ladeira. Eu ainda sou jovem, encaro a ladeirona. Mas é óbvio que as pessoas idosas que vivem no meu prédio não possuem o mesmo fôlego. Também não possuem fôlego para encarar a subidona de bicicleta. 

Drive or die!

Ótimo que o prefeito esteja investindo em ciclovias. É ótimo. Mas é ótimo para trechos mais curtos e planos. Encarar 2, 3 quilômetros subindo uma ladeira de bicicleta é difícil demais. 

Me parece ainda que o investimento mais urgente para Sampa é o transporte público de qualidade. 
Além dos ônibus, um excelente investimento é nos bondes urbanos. Na cidade onde eu vivia na Itália havia uma linha. Era rápido, confortável e regular. Imagino que instalar esse sistema custe muito menos do que abrir inaugurar novas estações de metrô.
Tram ou, abrasileirando, bonde 

Eu nem digo que esses bondes deveriam circular na Marginal Tietê, eles seriam uma excelente opção para os bairros. Poderiam circular nas ruas distantes de pontos de ônibus ligando essas regiões às estações de trem e metrô que já existem.

Nem a inauguração de novas ciclovias nem o investimento em mais ônibus eliminam a validade de pensarmos nos bondes urbanos como uma opção para melhorar os deslocamentos em São Paulo.

Pense nisso, Haddad!

Vou pensar, Verônica!

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Eu não sou Verônica!

Eu não sou Verônica! Eu jamais tentaria assassinar à pauladas uma idosa indefesa de 73 anos que estava em sua casa trabalhando, porque no Brasil idosas - mesmo brancas, mesmo heterossexuais - muitas vezes são pobres também e precisam trabalhar quando idealmente deveriam ter condições de aproveitar uma aposentadoria digna. 

“Ai! Você é a favor da violências policial!”

Bem, levando em consideração a violência no Brasil eu tenho lá minhas dúvidas sobre a possibilidade de existir uma polícia 100% pacífica que trabalhe resgatando gatinhos em árvores e dando informações para turistas perdidos. Mas não, não defendo violência policial indiscriminada, não defendo abuso de poder, não defendo que “bandido bom é bandido morto”. 

“Você não viu o que fizeram com ela na cadeia?”

Vi as fotos sim, preferiria não ter visto, mas vi. Eu vi, mas não sei o que aconteceu. Não sei exatamente o que houve para ela ficar naquele estado. Isso precisa ser investigado. 

“Ela foi vítima de transfobia!”

Você tem certeza disso? A violência nos cárceres no Brasil atinge praticamente toda a população carcerária. Eu vi a foto da Verônica. Mas já vi também fotos de cabeças de prisioneiros decepadas. Já vi fotos de corpos destroçados de prisioneiros. Já vi o choque entrar num presídio e executar mais de 100 pessoas. A violência brutal contra presidiários atinge todos que estão nas cadeias brasileiras. Será que a transfobia explica o que realmente aconteceu com Verônica? Eu não sei. E por isso retomo o que disse: precisa investigar.

“Reaça!”

Ah, ok. 

“RadFem transfóbica!”


Se você acha que devemos eleger de maneira precipitada uma mártir para efetivamente combatermos o preconceito contra a comunidade LGBT ok, pode me chamar de “RadFem transfóbica”. 

Veja aqui a versão da idosa agredida (fotos fortes!)

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Ódio.com (Parte 2)

Decidi continuar a falar sobre o ódio que é extravasado na internet. Meu foco será em relação ao ódio contra as mulheres e as razões são simples. Pesquisas indicam que mulheres são as pessoas que mais sofrem ameaças no mundo virtual - não por acaso no mundo não-virtual são as maiores vítimas de crimes sexuais também. O fato é que avançamos bastante contra o racismo e a homofobia. Precisamos avançar mais, mas pelo menos projetos de leis que especificam o racismo e a homofobia como crimes ao menos foram pautados. Já sobre o machismo e a misoginia ainda há pouco, muito pouco. As mulheres ainda são pouco contempladas no que se refere à políticas públicas de combate ao preconceito mesmo sendo elas os principais alvos. 

Já os grandes meios de comunicação pouco colaboram. Crimes como o Massacre de Realengo - cuja principal motivação foi a misoginia - foram tratados superficialmente pela mídia. Praticamente nenhum grande jornal ou portal de notícia destacou o fato de que o atirador fazia parte de comunidades machistas e atirou para matar principalmente meninas. O atirador participava de fóruns e comunidades misóginas, ali recebeu estímulo para levar adiante seu plano infame e a tragédia aconteceu. 

O fato é que essas comunidades misóginas - conhecidas pelo termo "masculinistas"- se proliferam sob as vistas grossas das autoridades. Nessas comunidades o ódio e o estímulo à violência contra as mulheres são livremente pregados sem que os homens por trás dos perfils fakes sejam minimamente importunados pela polícia. A situação é grave. 

Mas ainda mais grave é perceber que não apenas nesses ambientes declaradamente misóginos o ódio contra as mulheres rola solto. Em grandes portais de notícias comentários machistas e misóginos chegam a ser a maioria em notícias que tratam da violência contra as mulheres. O caso mais recente é essa matéria da Folha de S. Paulo.

A matéria é uma das raras ocasiões em que o machismo e a misoginia são tratados de maneira minimamente séria por um grande veículo de comunicação. A matéria é boa, dá voz às mulheres que são alvos das ameaças e traz uma discussão sobre o assédio contra as mulheres na internet. Fui conferir os comentários e não me surpreendi. Sempre o mais do mesmo. 


Esse primeiro comentário insiste numa velha prática: colocar o feminismo como o contrário do machismo. Aqui a falácia é aplicada sob um outro espectro: colocar a misandria no mesmo patamar que a misoginia. A desonestidade do comentário é óbvia. Qualquer pessoa com o mínimo de conhecimento sobre o feminismo sabe que:
1. Feminismo não é o contrário de machismo. Enquanto o feminismo luta pela igualdade de direitos o machismo é um sistema de opressão que perpetua a desigualdade entre homens e mulheres. 
2. Nenhum homem foi morto por ser homem, simplesmente o fato de ser homem não é fator estimulante para que um assassinato seja cometido. Por outro lado, mulheres são mortas todos os dias por serem mulheres.
3. Feministas não odeiam homens. O fato de feministas lutarem pelos direitos das mulheres não significa que elas odeiam os homens. Desde quando lutar por direitos de um grupo significa odiar outro grupo?


Esse segundo comentário é tão absurdo que chega a ser cômico. Posso retomar os argumentos que usei para o primeiro comentário. O fato de lutar pelo direito das mulheres não significa atingir os direitos dos homens e a luta não é motivada por "inveja" dos homens (ai, ai Freud...). A questão é simples: mulheres são atingidas cotidianamente pelo machismo e misoginia. Mulheres são assediadas nas ruas e na internet, são vítimas da violência doméstica, são tratadas como cidadãs de segunda categoria. Isso não é novidade. Num determinado momento um grupo de mulheres disse não! Um grupo de mulheres se rebelou e nasceu o feminismo (estou simplificando absurdamente a história, é só para ilustrar por enquanto). O feminismo é assim um movimento que luta contra a violência contra as mulheres e pelo direito das mulheres. Agora me respondam: qual é a relação disso com "inveja de homens"? 

Acho que já deu para ter um gosto de como essa série vai se desenvolver, certo? Aqui iremos destacar o ódio contra as mulheres que infesta a internet, infesta a internet porque é algo que infesta a própria sociedade. O método será:

  1. Verificarei notícias que falam sobre mulheres/feminismo e lerei os comentários destacando aqueles que expressam machismo e misoginia;
  2. Colocarei os prints e rebaterei os argumentos mais comuns usados pelos machistas/misóginos.
  3. Uma vez que os comentários são públicos não ocultarei a autoria das mensagens. 
Apertem os cintos! A viagem para as mentes sombrias de machistas e misóginos está apenas começando.


segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Prefeito de São Paulo humilha Villa e Sheherazade

Tranquilão esperando suas perguntas


Entrevista matadora do prefeito de São Paulo na Jovem Pan! Haddad com muita tranquilidade demoliu os argumentos frágeis e sensacionalistas do “historiador” Marco Villa e da “jornalista” Rachel Sheherazade. Eu coloco jornalista e historiador entre aspas porque pessoas que conduzem entrevistas desse nível envergonham suas profissões. 

Posso falar de Villa com mais propriedade.

Uma/um historiadora/dor tem OBRIGAÇÃO de fazer análise de longo prazo e confrontar dados. Fazer análises baseado no que ele vê, sem analisar e comparar dados e conjunturas é um erro vergonhoso e tão grotesco que duvido seriamente da formação do senhor Villa. Ou deveria duvidar da honestidade dele? Porque um historiador que deliberadamente ignora dados para usar de sua autoridade a fim de promover uma ideologia é um criminoso. Essa história eu conheço, Villa também deveria conhecer. Poucas áreas do conhecimento foram tão torturadas como a história a fim de legitimar os maiores crimes. Triste ver que ainda há historiadores que se prestam à esse papel. 

Haddad, por sua vez, deu show. Conseguiu responder com muita segurança as perguntas, conhece os dados, conhece a cidade e mostrou que planeja as políticas que conduz. Evidentemente que Haddad não é e nem será popular nos bolsões de riqueza de São Paulo, habitat do que há de mais retrógrado e tacanho na sociedade brasileira contemporânea. Gente que não quer abrir mão de absolutamente nenhum conforto pelo bem comum. Gente que não sai de seus carrões, que nunca saiu de seus bairros ricos. A política de Haddad contempla uma população de periferia que foi sistematicamente negligenciada pelo poder público. Essa população não é de interesse da Jovem Pan, da Veja, do Estadão. Essa população é aquela que os nobres moradores de Higienópolis admitem apenas como limpadores da sujeira que produzem em suas coberturas, ao menor aceno para os direitos dessa população a elite raivosa ouvinte da Jovem Pan e leitora da Veja baba de ódio. 


Sem mais delongas, um link para a entrevista. É longa, mas vale cada minuto. Cada minuto que demole a canalhice de certas pessoas que dominam a mídia coorporativista. 


domingo, 22 de fevereiro de 2015

Ódio.com



É surpreendente como a humanidade ainda não se auto-destruiu. Sério. Eu fico olhando alguns comentários na internet e tenho ficado um pouco paranóica. Quando pego transporte público me pergunto quantas daquelas pessoas que estão ao meu redor são aqueles personagens anônimos que destilam ódio na internet. Quantas daquelas pessoas que me rodeiam escrevem em notícias de estupro dizendo que a vítima “mereceu”? Quantas daquelas pessoas ameaçam pessoas como a Lola com violência sexual e esquartejamento só porque ela ousa falar de feminismo? Quantas daquelas pessoas comentaram que Jandira Magdalena Cruz, que morreu após um aborto realizado clandestinamente porque o Estado brasileiro é omisso, comentaram que Jandira mereceu a morte que teve? 

Homem comenta sobre a morte de Jandira Magdalena Cruz


Eu assisti o vídeo da Giovana, aquela menina que acaba em maus lençóis depois que o forninho caiu sobre ela. Caí na besteira de ler os comentários e li gente - os mesmo moralistas que defendem embriões - chamando a garotinha de “puta”. O que leva uma pessoa a chamar uma menininha de “puta” só porque estava dançando em casa? Para essas pessoas a “vida” e a “dignidade” das crianças (embriões, no caso do início da gestação) valem enquanto estiverem no útero das mulheres. Depois que nascem, especialmente se forem meninas, não importa mais. Depois que nascem vale chamá-las de “putas” por causa de uma dança dentro do quintal de casa. 

Homem xinga criança em comentário no vídeo "Eita Giovana"


É uma psicopatia coletiva, uma falta de empatia generalizada, o triunfo da crueldade. Estamos cercadas por pessoas que não pensam antes de opinar, que usam da segurança da internet para xingar, ameaçar, humilhar. Eu me pergunto se algumas pessoas realmente pensam o que escrevem ou se usam da internet para darem vazão à suas segundas personalidades psicopatas. Nenhum dos cenários é entusiasmaste, na realidade. 

Com tanto ódio, com tanta falta de compreensão, como ainda estamos aqui nesse planeta? 

Danilo Gentili, um dos seres mais repugnantes que ocupam horário na televisão (uma concessão pública que deveria cumprir função social, é sempre bom lembrar) tem milhões de seguidores fiéis no twitter. Um exército raivoso que defende o “ídolo” que diz o que eles pensam. Que diz que negras/os merecem bananas, que dispara sem cessar piadas machistas e misóginas, que sob o manto da inatacável “piada” não pensa duas vezes em vomitar o que ele pensa de verdade sobre negras/os e mulheres. Para ele e seus seguidores risadas boçais são mais preciosas do que a dignidade de outros seres humanos. Onde isso vai parar? 


quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Uma crônica de merda

É muito difícil impedir que as pessoas digam merda. Primeiramente porque o sentido de “dizer merda” é muito subjetivo. Há muitos anos, quando eu ainda era uma adolescente deslumbrada, o namorado de uma amiga minha me contava que o professor de biologia dele dizia muita merda. Perguntei que tipo de merda ele dizia. O nobre rapaz, evangélico de carteirinha, me disse que o professor dizia que os homens vieram do macaco. Se o professor realmente disse “os homens vieram do macaco” eu concordaria que ele disse merda, mas duvido que a história tenha sido bem essa. Enfim, para o moço o professor dizia merda, para mim ficou o ponto de interrogação. 

E?

É que eu me vejo obrigada à retornar à pasta “Silvia Pilz”. Circula agora um texto que ela publicou há uns meses, texto mais antigo do que aquele sobre procriação, pobres e planos de saúde. Nesse “novo” texto, que na verdade é pré-histórico dada a tempística da internet, nossa colunista diz que tem uma tara em chamar “anões de anões”, que pessoas com síndrome de Down são estranhas, que crianças negras são feias e que todo mundo quer ser loiro de olhos azuis. 

Fico me perguntando quais são as fontes de Pilz para dizer que todo mundo quer ser loiro de olhos azuis. Diante da qualidade do raciocínio dela imagino que como ela gostaria de ser loira de olhos azuis deduziu que todo mundo tem o mesmo desejo. Deve ter muita gente que como ela faz masturbação mental imaginando possuir olhos claros e cabelos loiros. Mas deve ter muita gente feliz com suas peles negras, cabelos crespos e olhos castanhos. Tem muita gente feliz e muita gente que queria ser outra coisa. Vi um programa em que um menininho declarava que quando crescer quer ser um coelho. Eu preferiria ser o cachorro do meu colega de casa, que passa seus dias deitado sem preocupações recebendo cafuné e olhando pela janela. 

Na minha opinião Pilz falou merda. Tem gente que queria ter olhos claros e cabelos loiros que pode pensar que não. 

Imagino como uma pessoa com nanismo se sinta ao receber a inédita notícia de que causa estranheza. Os olhares indiscretos que recebem todos os dias na rua não devem fazer essas pessoas pensarem que Pilz escreveu alguma novidade. Talvez o que as surpreenda mais seja o fato de que Pilz quer ter o direito de chamá-las de “anão”. O que ela ganha com isso eu não sei, deve ser alguma tara estranha. Para mim gente que tem esse tipo de tara tem uma cabeça de merda e costuma dizer merda. Mas isso é bastante relativo. Tem uns humoristas sem-graça que pensam o mesmo que Pilz. Eles concordam entre eles. Eu só penso que dizem merda, muita merda. 

Uma amiga de uma tia minha tem um filho com síndrome de down. Ele é filho único e vive com a mãe. Os dois têm uma linda sintonia e relação. Ele terminou o ensino médio, foi mais devagar que outras crianças, mas terminou. Tem gente que não tem down e não termina. Todo mundo tem dificuldades, o que separa os fortes dos fracos é como enfrentam essas dificuldades, com ou sem a síndrome de down. Ele enfrentou com bravura. Hoje ele trabalha, é um cara relativamente independente e um filho zeloso e carinhoso com a mãe. Para Pilz ele causa desconforto. Para mim causa desconforto filhos ingratos que negligenciam as mães e pais. Pessoas têm taras e desconfortos muito diferentes, mas muitas vezes essas coisas são determinantes para a produção de discursos que podem ser inseridos no guarda-chuva semântico do “dizer merda”. 


Pilz me fez escrever um texto descontinuado porque me causa um enorme desconforto. É que o que realmente me causa desconforto é dizer muita merda. Mas acho que tanto Pilz quanto outros produtores de merdística devem poder continuar a produção. Aí ficamos sabendo o que pensam, aí rimos na cara deles e imaginamos o quanto tem gente que diz merda. Da merda nascem flores. Que os arautos da merdística nos façam pessoas melhores.  

E o hit de hoje é:


quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Você sempre pode piorar o ruim

Carlos Latuff estava entre os cartunistas que eu mais gostava. Tem um traço bacana e normalmente manda bem na arte de passar uma mensagem poderosa com a concisão de um cartoon. Mas ele caiu na armadilha que eu tentei discutir nesse post. Não quero me repetir, mas meu ponto é que quando você tenta dar voz à uma experiência que você desconhece as chances de fazer uma enorme besteira aumentam muito. Desconfio de quem entra na onda da defesa de tudo. Isso não quer dizer que você deve se omitir diante de racismo, machismo, xenofobia… nada disso. Isso quer dizer que você precisa ter a maturidade de reconhecer que ao tentar falar sobre esses temas POR QUEM vivência essas realidades todos os dias você parte do pressuposto arrogante de que você é capaz de falar pelos outros. 

Eu sou branca, nunca sofri racismo na minha vida! Nunca! Eu posso apoiar o movimento das mulheres e homens negros, mas eu tento fazer isso primeiramente ouvindo o que essas pessoas têm a me dizer, tentando compreender o que elas têm a me ensinar. E eu aprendi um monte de coisas. 

Um dia estava com umas amigas num churrasco. Uma delas é negra, uma socióloga estadunidense que dá aulas numa universidade nos EUA. Ela é uma mulher negra que além de vivenciar o racismo todos os dias estuda o tema há anos. Nesse churrasco o assunto do acesso ao ensino superior entrou em pauta. Naquela época eu era contra cotas raciais e manifestei minha opinião e soltei uma frase racista. Ela me escutou pacientemente e depois demoliu meu discurso de menina de classe média branca. Não estou diminuindo o fato, ou me envergonhando, de ser branca e de classe média. Estou dizendo que eu estou numa posição privilegiada. 

A primeira vez que botei meus pés numa instituição de ensino público foi quando entrei na universidade, isso depois de estudar toda a minha vida em escolas particulares. Não precisei trabalhar enquanto estudava, morava numa casa confortável, minha grande preocupação na vida era estudar para a prova de matemática, meu maior pesadelo! Ia para a escola bem alimentada, quando voltava o almoço estava pronto, cozinhado pela empregada. Uma das filhas dessa empregada, que era negra e tinha evidentemente filhos negros, engravidou quando era muito jovem, entrou no mundo das drogas, vou chamar essa menina de Marina, é um nome fictício. Marina era um pouco mais nova do que eu e fazia a própria comida enquanto a mãe dela cozinhava para mim. Marina voltava sozinha da escola pública enquanto a mãe dela ia para a porta da minha escola particular me buscar. Enquanto a mãe dela se preocupava em lavar e passar minhas roupas Marina se virava sozinha. Porque para sustentá-la a mãe dela precisava cuidar de mim enquanto ela passava o dia inteiro sozinha. Eu tive milhões de mais chances do que Marina. Enquanto eu vivia protegida dentro dos muros da minha casa ela vivia numa favela rodeada pela miséria, era marginalizada, acossada. Ela foi tragada pela própria realidade assim como eu fui tragada pela minha. A minha é comemorada pela sociedade, recebo elogios e tapinhas nas costas. Ela é esculachada pela sociedade, apontada na rua e há quem diga que ela merece ser exterminada. 

Me respondam, por favor, quem sou eu para dizer que é a meritocracia que vale algo? Quem sou eu para dizer que não devemos abrir cada vez mais nossas universidades para as jovens e os jovens negros? A universidade sempre esteve aberta para mim e fechada para elas/es. Meu primeiro “mérito” foi ter nascido branca numa família que podia me dar muito, esse meu “mérito” involuntário pavimentou meu caminho. E ela? 

Minha mãe fala de mim com orgulho. A mãe de Marina reza para não receber um telefonema anunciado a morte da filha. 

Isso é uma das coisas que a minha amiga me ensinou. Eu demorei muito para aprender. Aquele churrasco foi determinante. Ter ouvido dela que eu fui racista foi determinante. Não vou me fazer de “fodona”. Na hora eu fiquei com raiva da minha amiga. Muita raiva de ter sido acusada de racismo. Mais com o tempo amadureci o que ela me ensinou, fiz a retrospectiva da minha história comparando com a história da Marina. Quando eu reencontrar minha amiga quero agradecer o tapa de realidade que ela me deu. Sem rodeios, sem concessões. Minha amiga me salvou de um pouco da minha ignorância. 

Sabe? As vezes ser confrontada com os próprios preconceitos, especialmente quando você se coloca como uma pessoa contra os preconceitos, dói demais. Incomoda demais. Mas antes de tudo, ensina demais. O exercício é difícil, mas é o mínimo que podemos fazer se nos propomos a fazer algo.


Carlos Latuff lançou uma tirinha machista uma vez. Foi confrontado. Lançou outra se retratando. Carlos Latuff lançou uma tirinha machista outra vez. Foi confrontado. Perdeu a chance de aprender. No alto da própria arrogância emite um tipo de discurso que não difere muito dos discursos que a gente privilegiada e covarde que ele denuncia se esforça por propagar. Tentou falar de feminismo dando exemplo do SCUM manifesto, reproduziu a tolice freudiana de que mulheres têm inveja do pênis. Se desnudou. Outros andam se desnudando também. O que pessoas como Latuff, Idelber Avelar e muitos outros mostram é que muitas vezes se engajar em muitas lutas é puro alimento para seus egos. Eles têm certezas, eles querem palmas e elogios. Na primeira hora em que palmas viram “Ei, peraí” eles regurgitam tudo o que diziam combater. Esse tipo de comportamento me faz pensar que muito da militância é puro egoísmo ou egolatria. Chame como preferir. 

P.S. As vezes termino o post com uma canção. Aqui vai uma pérola que tem tudo a ver com tudo isso =)


quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Silvia Pilz não precisa pedir desculpas

Circula na rede e desperta revolta o texto escrito por Silvia Pilz no qual a autora destila todo o seu “horror à pobre” ao melhor estilo Caco Antibes. A autora recebeu grandes e justas críticas e respondeu com a velha fórmula “era só brincadeirinha”. Oh céus! Quando me deparo com essa justificativa me pergunto se falta à essa gente talento ou coragem. Talento para inventar uma desculpa melhor. Ou coragem para assumir o que escreveu. 

A falta de talento de Pilz é óbvia. Se o texto era para ser “divertidíssimo” a autora falhou miseravelmente. Foi muito, muito sem graça. Impressionante como o humor cafona dos comediantes sem-graça da stand up paulista está se proliferando no Brasil, né? Mas eu até compreendo as pessoas que insistem nessa fórmula, o insulto gera polêmica, a polêmica dá audiência. Pilz certamente ganhou a antipatia de muita gente, mas é igualmente certo que ela ganhou alguns fãs que a tratarão como mais uma mártir do “politicamente correto”. O mundo está vulgar e chato. Norbert Elias mostrou no seu belíssimo livro “A Sociedade de Corte” que a lógica que legitimava a existência da nobreza francesa era que os nobres eram os guardiões do belo, da alta cultura, da inteligência. Nossa Alta Classe Média - a nobreza da contemporaneidade - nem essa lógica preserva. São burros, miseravelmente burros em suas sentenças e desculpas. Burros e covardes. Covardes?   

Ok, concordamos que falta talento à Pilz, tanto se considerarmos o nível do texto dela quanto a desculpa que deu. 

E coragem? Bom, o clichê do “reductio ad humorem” (ou “redução ao humor”) já foi detectado, o que pode ser perfeitamente considerado falta de coragem de dizer logo que ela não gosta de pobre. Falo isso muito seriamente. Ela não tem obrigação de gostar de pobre, eu não tenho obrigação de gostar dela e você não tem obrigação de gostar de necas e muito menos de pitibiribas. Seria mais honesto e corajoso da parte dela simplesmente dizer: eu não gosto de pobre! Pronto, fim. Uns se revoltarão, uns gostarão, uns concordarão, outros xingarão. O efeito seria exatamente o mesmo que ela experimentou, a diferença é que ela seria mais honesta. Honesta com ela mesma, e principalmente, honesta com os leitores. E isso importa, porque ela escreve num grande jornal, tem um espaço de fala privilegiado, ser honesta com os leitores é o mínimo que ela deve fazer para merecer o próprio salário. 


Aí, envolta numa enorme covardia e falta de talento, ela ainda dá uma entrevista dessas na qual afirma que “não precisa se desculpar” já que disse a “verdade”. Verdade, que segundo ela seria o pressuposto de que “os pobres gostam de procriar”. Sim, Pilz, você não precisa se desculpar por não gostar de pobres. Não precisa nem se desculpar por sua covardia e falta de talento. Você não precisa se desculpar pelo o que pensa, mas precisa se responsabilizar pelo o que escreve, pelo o ato de tornar pública sua burrice. Não se desculpe mesmo, se responsabilize. 

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Sobre ser ou não ser Charlie

O mundo Ocidental está dividido depois dos terríveis atentados ocorridos na França. O mundo Ocidental está dividido entre aqueles que condenam o atentado sem “…mas…” e aqueles que condenam o atentado, mas sob o véu do cinismo ou egocentrismo, dão malabarismos semânticos que muito mal disfarçam o maldito “eles mereceram”. 

Pelo meu primeiro parágrafo já dá para perceber de que lado eu estou.

Muita gente boa já escreveu a favor dos dois lados. Eu só justifico porque estou entre o grupo dos “sem mas…”. Minha defesa é simples, mas tem meandros complexos. Eu estou do lado em que estou porque acredito veementemente que entre os direitos humanos mais fundamentais está o direito de pensar e se expressar. É o livre-pensamento e a possibilidade de colocá-lo em debate público que nos torna humanos e mais humanos. Somos humanos porque pensamos, tentamos compreender, discutimos, e defendemos nossas idéias, e damos sentido ao mundo que nos rodeia. Não há condicionais para o direito fundamental de exercer, construir, desconstruir e reconstruir nossa humanidade. 

É óbvio que isso não significa que o pensamento está livre de crítica. Não está. Se me deparo com uma idéia com a qual discordo eu rebato, argumento, tento demolir os ARGUMENTOS que sustentam a idéia que me causa desconforto. Assim eu aprendo a organizar minhas próprias idéias, assim meus oponentes intelectuais e ideológicos podem fazer o mesmo. Lobão, o músico que virou polemista político, certa vez soltou uma frase que me marcou “o debate é um ato de amor”. Eu concordo, o debate é um ato de amor humano, debater com o outro é reconhecer a sua humanidade, o não-dito é como “eu te ouvi, tentei compreender o que você disse, eu discordo e vou te responder agora com minhas palavras”. 

O terrorismo é a negação da humanidade. O não reconhecimento da validade da expressão por si só é negar o valor humano do outro, quando negado esse valor o outro passa a ser um alvo que deve ser calado. 

Apesar de todos os tropeços o mundo Ocidental reconheceu a expressão das idéias como a expressão do próprio ser-humano. Não só reconheceu como protege esse valor fundamental como sua principal bandeira. A reconstrução dos Estados Nacionais pós-Guerra se pautou nesse ideal e esse ideal foi o motor ideológico que sustentou a oposição do Ocidente ao socialismo soviético. Esse ideal continua firme e forte e é ele que os jornalistas do Charlie Hebdo defendiam acima de tudo colocando suas próprias vidas em risco. Defendiam em todas as frentes, radicalmente, enfrentando o próprio governo francês as vezes, enfrentando a Igreja Católica, enfrentando os muçulmanos, enfrentado tudo o que quer limitar a livre expressão e consequentemente tirar um pouco de nossa humanidade. 

É por isso que eu sou Charlie Hebdo. Ao contrário do que li em algum lugar - dentre as dezenas de artigos que li sobre os atentados - eu não acredito que essa expressão seja uma simplificação. Há uma complexa e poderosa mensagem nessa declaração. É a declaração de que eu, e todos os outros Charlies, defendemos o humano.

Defendemos o humano, e os humanos.

Até os nigerianos massacrados pelo Boko Haram. É que o pressuposto que assassinou os cartunistas do Charlie Hebdo é o mesmo que apertou o gatilho que tirou a vida de mais de duas mil pessoas no país africano. É a negação da humanidade, é o ato nefasto de negar o direito de pensar e viver como se acha melhor. 


A comoção pelos mortos de Paris não é uma comoção apenas porque eles eram franceses, é uma comoção que reconhece que o gatilho fundamentalista que mata na França mata no mundo todo, e continuará a matar se não dermos uma resposta incisiva à isso: sem “mas”! Eu sou Charlie Hedbo. 

P.S. Está disponível na internet a primeira edição histórica do Charlie Hebdo. A edição está esgotada na França.  

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Eu, eu mesma e meus seguidores

Um dos filmes mais poderosos desse neófito que é o século XXI, na minha opinião, é Watchmen. Ouso dizer que gostei mais do filme do que da Graphic Novel, que me desculpem os puristas. Em um certo momento do filme o infame Comedian está numa reunião com outros “heróis”, eles discutiam as possibilidades de salvar o planeta à beira do colapso nuclear. Conversa vai, conversa vem, o Comedian se levanta, bota fogo no mapa com o plano do Ozymandias e solta a frase que dá o tom para toda a trama: seres humanos desde sempre tentam se destruir, a diferença é que encontramos a maneira mais eficaz para fazer isso. (a frase não é bem essa, mas é essa a idéia)

Para quê salvar uma raça que desde sempre procura os meios para se auto-destruir? Não lutamos contra forças estranhas, nosso maior inimigo somos nós mesmos… O Comedian não foi o primeiro a dizer isso, rios de tintas filosóficas já correram sobre nosso ímpeto auto-destrutivo, em respostas rios de tintas correram para tentar nos defender enquanto espécie também. Mas somos sempre nós, falando sobre nós mesmos. 

E aqui chegamos onde eu realmente quero chegar.

Eu tenho lido centenas de textos que criticam as redes sociais e os usos que fazemos delas. Nossos perfils online são o palanque onde auto-promovemos nossas vidas, ou ao menos como a idealizamos. Likes, shares, comentários, xingamentos, na segurança de nossas casas desbravamos o mundo, ou melhor, nos mostramos ao mundo. O que em nós mudou? 

Eu faço uma crítica aos críticos.

Nada de nós mudou, somos os mesmos de sempre. Sempre quisemos aparecer, só que agora encontramos meios mais eficazes para fazer isso. 

A internet, as redes sociais, não mudaram nosso modo de ser. Deram vazão ao que sempre fomos. Todo mundo quer seus segundos de fama porque acha que sua própria existência tem alguma importância, ou melhor, busca aprovação dos outros para que se lembrem reiteradamente que a própria existência importa. 

É que a nossa importância enquanto indivíduos não é óbvia.

Além de nossas mães e pais que dizem que valemos algo (isso vale para os afortunados com pai e mãe, ou pai e pai, ou mãe e mãe, etc), para além do pequeno círculo familiar não é óbvio que valemos algo. Nossa própria importância não é algo já dado, é algo que visamos afirmar de diversas formas: pelo trabalho, pelo amor… e agora, graças à internet, pela foto fantástica que tiramos no final de semana, pelo compartilhamento de artigos indignados com a fome na África, com a constante construção de uma imagem de alguém que se importa com o mundo, e portanto é de alguma forma importante para o mundo. Não há ofensa maior do que dizer: sua existência é completamente irrelevante. Nos expomos nas redes sociais por isso: para provarmos para quem nos acompanha e, principalmente, para nós mesmos, que nossa existência não é completamente irrelevante. 

Nem todo mundo escreverá um livro que mudará a história. Nem todo mundo tem um talento incrível que será reconhecido como importante para nossa espécie. Nem todo mundo liderará uma revolução. Nem todo mundo diante de enorme massa de seres de nossa espécie, diante da nossa longa história, diante da nossa curta história diante da incomensurável história do universo, é relevante, deixará uma marca depois que partir dessa para melhor, mudará qualquer coisa. Nem todo mundo… e quanto mais cientes somos disso mais desesperados ficamos. E mostramos nossas vidas para o mundo “Ei! Eu estou aqui! Eu importo! Eu não como carne! Eu me preocupo com as vaquinhas que têm o leite roubado! Eu me preocupo com os curdos sendo massacrados pelo Estado Islâmico! Eu lamento o destino dos palestinos dilacerados pelas metralhadoras israelenses! Eu me importo, eu juro que me importo!”… as vezes sinto falta de ler a verdade “eu estou em desespero, diga que você se importa comigo, diga que eu tenho algum valor”.

Sempre fomos assim, nada mudou. Mas agora precisamos de menos empenho para alguém nos convencer de nossa relevância. Outrora você deveria no mínimo escrever um batia livro, o que é um trabalho monstruoso que exige muito sacrifício, horas na biblioteca e dedos doloridos. Fora disso apenas seus amigos e familiares poderiam servir para te dizer “você é importante”. Hoje temos outros meios. Nas redes sociais mostramos o que queremos que vejam de nós e sempre terá alguém para dar um “like”! “Oi! Eu te notei! Eu gostei disso!”

Somos os mesmos seres desesperados de sempre. Tentando perpetuar nossa memória individual enquanto o mundo se esfacela ao nosso redor pelas mãos de nós mesmos e nossos companheiros de miséria. 


Então viva! Não se envergonhe. Você pode dar até uma de blasé e dizer que não liga para o Facebook usando o Facebook para dizer ao mundo que você não liga. Pode mentir, eu dou um “like”. 

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Carta aberta ao Vereador Jorge Felippe - sobre o aumento das tarifas do transporte público do Rio de Janeiro

Carta aberta ao Vereador Jorge Felippe, presidente da Câmara Municipal do Rio de Janeiro

Excelência,

Confesso que pouco ouvi falar do senhor, imagino que seja principalmente por causa da irrelevância dos projetos que o senhor apresentou nas mais de três décadas que ocupa um cargo público (Saiba mais aqui) . Mas isso não é o mais importante agora.

O fato é que li no Jornal O Dia a declaração feita pelo senhor segundo o qual os cariocas “entendem” o aumento da tarifa do transporte público. Como carioca posso afirmar que o senhor está equivocado, ao menos em parte.

Eu “entendo” o aumento da tarifa apenas a partir de um ponto de vista: da relação promíscua mantida entre os grandes empresário do transporte urbano - como o senhor Barata que acredito que o senhor conhece bem, caso não o conheça, seguramente a sua filha o conhece - e os representantes do poder público. “Entendo” apenas se levo em consideração que o senhor e seus colegas, a despeito dos clamores populares, reiteradamente impedem que essa promiscuidade seja investigada numa CPI séria. Tanto eu, quanto tantos outros cariocas, imaginamos que essa proteção dado pelo senhor e seus colegas de câmara não deve vir gratuitamente, mas avançar nesse ponto seria apenas um palpite uma vez que o senhor e seus colegas são hábeis em impedir que os cariocas entendam a dimensão de tão profícua amizade entre políticos cariocas e empresários como o Mr. Barata.

Fora dessa ótica eu não entendo o aumento das tarifas.

Não entendo porque como usuária do transporte público urbano a “qualidade” que eu conheço é bem duvidosa. É uma qualidade marcada por atrasos, ônibus caindo aos pedaços, sempre lotados e que estão muito longe de atender minimamente a demanda. Talvez o senhor desconheça essa “qualidade” uma vez que usufrui de transporte particular “ocasionalmente” bancado pelo dinheiro dos impostos recolhidos mediante um sistema, este sim, de altíssima qualidade. 

Tendo tudo isso em vista, venho por meio desta singela carta fazer um apelo para o senhor.

Por favor, não fale pelos cariocas. Embora teoricamente o senhor nos represente a sua declaração indica que o senhor não só não nos representa como está no mínimo alienado de nossa realidade. Se mesmo assim o senhor insistir em dizer o que nós entendemos ou deixamos de entender, peço por gentileza que seja mais específico, ou mesmo honesto, em suas declarações. Na próxima entrevista pense em declarar que: 

“os cariocas entendem o aumento das passagens porque sabem que muitos de nós representantes somos eleitos e mantidos graças às generosas doações feitas por donos de empresas de ônibus e outros empresários, eu por exemplo sou muito grato à Marcon Empreendimentos Imobiliários que me doou 150 mil reais para a campanha, e também à Multiplan Empreendimentos Imobiliários que me doou 50 mil reais ”. ( Fonte: http://inter01.tse.jus.br/spceweb.consulta.receitasdespesas2012/abrirTelaReceitasCandidato.action )


O que acha, excelência? Não fica mais fiel aos fatos?