quinta-feira, 14 de março de 2013

Reality Show e a Banalidade do Mal


Acho que já passamos da hora de abandonar as leituras moralistas a respeito do que é produzido pela indústria cultural, ou a crítica não apenas será conservadora como permanecerá inócua. As infindas polêmicas a respeito da baixa qualidade estética dos programas e de seu desprezo completo por qualquer coisa que seja minimamente digna estão pressupostas pelo show antes mesmo que possamos esboçar o primeiro grito indignado de “baixaria!”. Uma forma mais sofisticada de rejeição moralista dos reality shows é a alegação de que tanto aqueles que participam quanto aqueles que os acompanham o fazem em razão de alguma forma de perversão: sadismo, masoquismo, exibicionismo, voyeurismo... Desse modo, a crítica perde de vista a dimensão propriamente social do fenômeno; perde de vista uma forma de dominação que é estrutural – além, é claro, de recolocar o já antigo rebaixamento da “massa” em contraposição à “elite cultural”.
Ao contrário do que os próprios programas se esmeram em provar, os participantes são pessoas comuns e, mais importante, agem da forma que agem (machucando-se uns aos outros e se martirizando a si mesmos) como se cumprissem funções ordinárias. A isso Hannah Arendt chamou “banalidade do mal”: eles não praticam o mal levados por motivações políticas, religiosas, estéticas ou por prazer; pelo contrário, as provas, absurdas e desagradáveis, assim são descritas por eles e assim são vivenciadas, como a profusão de lágrimas sublinha a cada episódio. O mal é encarado como um mal necessário ou, como afirmou certa vez um ex-participante: ser filha da puta é parte do contrato; deve-se cumpri-lo. O mal é assimilado como parte de um trabalho, uma função como outra qualquer, cujos efeitos colaterais – em especial a dor de fazer mal aos outros – são minimizados mediante a própria justificativa: “Só estou cumprindo minha tarefa”. Nos patamares acima do chão de fábrica, a lógica não é tão diferente, apesar de a justificativa ser, a cada degrau, mais indecente – o apresentador de A fazenda disse, em entrevista a um programa de sua própria emissora, que chorava todos os dias em casa, quando findo seu expediente. Já as diversas empresas realizadoras de reality shows têm por finalidade única a geração de lucro − tudo mais é meio para sua realização. Esse seria, talvez, o único nível em que se pode dizer que há perversão pura: como um sistema que busca aniquilar toda a materialidade, e por ela tem total indiferença, tendo em vista tão somente sua autorrealização, o capitalismo é perverso. (Silvia Viana em entrevista para o Le Monde Diplomatique. Íntegra disponível aqui)

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